Foto: Reprodução/ Globo
"Eles cozinham o índio, é a
cultura deles", disse Bolsonaro em vídeo circulado nas redes sociais.
O vídeo que viralizou nas redes sociais nesta
semana no qual Jair Bolsonaro aparece dizendo a um jornalista que quase “comeu
um índio” que teria sido “cozido” pelos indígenas contém mentiras e
desinformações sobre o povo Yanomami, de Roraima. O yanomami Junior Hekurari,
presidente do Condisi (Conselho do Distrito Sanitário Indígena) Yanomami, disse
que ficou indignado quando assistiu à gravação.
“Nós, Yanomami
do Surucucu, não somos canibais, nunca tivemos isso. Não tem um relato [sobre
isso]. Nem relatos ancestrais nem atuais. Esse presidente não tem respeito com
o ser humano. Ele inventa da cabeça, porque não tem preocupação com o Brasil. No
Sucurucu tem pelotão do Exército e tem parceria boa com os Yanomami. Isso de
‘comer indígena’, isso não existe.”
Hekurari disse
ter conhecimento de que um grupo indígena Yanomami, já localizado na Venezuela
e conhecido como Xamathari, pratica o ritual fúnebre de cremar o corpo, o
que pode durar dias ou semanas, triturar e pulverizar os ossos e, por fim,
misturar as cinzas, já bastante pulverizadas e em pequenas quantidades, como se
fosse sal ou pimenta, a um caldo de banana, que somente então é consumido pelos
familiares do morto. Mas esse ritual não prevê o consumo da carne humana e só
ocorre eventualmente, “com algumas pessoas, geralmente pessoas muito
importantes na comunidade”. Nos rituais fúnebres realizados na região de
Surucucu, de acordo com Hekurari, as cinzas são enterradas, e não consumidas
com a banana.
A antropóloga
Alcida Rita Ramos, doutora em Antropologia pela Universidade de
Wisconsin-Madison (EUA), que participou do processo de demarcação da Terra
Indígena Yanomami e é professora emérita da UnB (Universidade de Brasília), no
final dos anos 1960 e início dos anos 1970 viveu mais de dois anos nas
comunidades Yanomami. Ela explicou à Agência Pública – em um
pequeno texto que intitulou “Canibais são os outros” – o passo a passo do
ritual funerário Yanomami.
“Com pequenas
variações regionais dentro da Terra Indígena Yanomami, o ritual funerário de um
parente começa com pranto coletivo, seguido da cremação do cadáver, momento em
que os componentes imateriais da pessoa se libertam do corpo físico. O pranto
acompanha esse processo e se repete todas as tardinhas por dias ou semanas. Os
ossos carbonizados são recolhidos, triturados e cuidadosamente guardados em
cabaças seladas com cera. Algum tempo depois, começam os preparativos para a
grande cerimônia em homenagem ao morto. Congregando várias comunidades vizinhas
e até mesmo distantes, anfitriões e convidados desempenham as diversas fases da
cerimônia que dura mais de uma semana, incluindo cantos, danças, sessões
xamanísticas e o que chamamos de diálogos cerimoniais. No último dia, o mais
solene, os ossos do morto são pulverizados, adicionados a mingau de banana e
ingeridos pelos parentes mais próximos.”
Alcida Ramos
faz um paralelo entre o ritual Yanomami e a comunhão nas missas da Igreja
Católica. “Todas as semanas milhares e milhares de fiéis católicos ingerem
grandes quantidades de hóstias, bolachas de pão sacralizadas para representar o
corpo de Jesus Cristo. É um ritual de incorporação de quem está morto, não
importa há quanto tempo. Quem ousaria chamar essa prática de canibalismo? Em
que ela difere do rito funerário Yanomami? […] Assim como a hóstia cristã
incorpora a memória do Cristo entre os vivos e os torna mais cristãos, também
as cinzas do parente Yanomami transmitem a sua essência aos vivos e os tornam mais
fortes. É a manifestação máxima de solidariedade humana, capaz de superar a
própria morte quando une um morto aos seus parentes vivos. Ao mesmo tempo, a
incorporação material do morto libera seus componentes imateriais para seguirem
o seu próprio destino pós-morte, desprendendo-o definitivamente do mundo dos
vivos.”
A professora
disse que “a sutileza, o respeito e a grandeza dos ritos mortuários dos
Yanomami contrastam cruamente com as tolices perversas e constrangedoras que
circulam nas redes sociais, escancarando a palermice e a má-fé que ninguém
merece ver, muito menos os povos indígenas e o Brasil como país pluriétnico que
é”.
O vídeo que
viralizou nesta semana nas redes sociais foi gravado em 2016 e foi extraído de
um vídeo mais longo postado naquele mesmo ano pelo próprio Bolsonaro em seu
canal no YouTube. Trata-se, segundo Bolsonaro, de uma entrevista ao jornal “The
New York Times”.
No vídeo,
Bolsonaro aparece se gabando de ter coragem de quase ter “comido um índio”.
Segundo ele, o fato se passou em Surucucu. Embora Bolsonaro não explique,
trata-se de uma das principais comunidades da Terra Indígena Yanomami. Equipada
com uma boa pista de pouso asfaltada, a comunidade costuma receber comitivas de
autoridades vindas de Brasília, o que parece ter sido o caso relatado por
Bolsonaro.
Ele diz que em
certo ponto da visita notou uma movimentação de indígenas carregando bananas e
um indígena “palitando os dentes” e, por isso, ele quis saber o que estava
acontecendo. “O que aconteceu? [Alguém respondeu] ‘Morreu um índio e ele tão cozinhando.’
Eles cozinham o índio, é a cultura deles. O corpo”, disse Bolsonaro.
O jornalista
manifestou descrença: “Mas não é para comer…”. “É pra comer”, reiterou
Bolsonaro. Ele explica como seria: “Cozinha por dois, três dias, e come com
banana. E daí eu queria ver o índio sendo cozinhado. Daí o cara: ‘Se for, tem
que comer’. Aí falei ‘Eu como’. Daí a comitiva, ninguém quis ir. ‘Vamo comigo
lá’. Ninguém quis ir. Daí como a comitiva não quis ir, que tinha que comer o
índio, eu, não queriam me levar sozinho lá. Aí não fui. Senão eu comeria o
índio sem problema nenhum. É a cultura deles. E eu me submeti àquilo,
talquei?”.
Para Junior Hekurari, que vive em Surucucu, toda a história contada por Bolsonaro no vídeo “é mentira”. “É sem cabeça, eu fiquei muito chateado. Coloca aí na sua matéria: ‘Presidente candidato mentiroso’.”
Texto: Rubens Valente/ Agência Pública
Publicação: Enzo Oliveira/ Radialista Redator RMPTV