Foto: João Guilherme Bieber / Agência Pública
Pessoas
intoxicadas, plantações destruídas e animais mortos: moradores de comunidades
da zona rural de Pernambuco denunciam que essas foram as consequências de uma
pulverização de agrotóxicos feita por drones em áreas de pasto da empresa
Agropecuária Mata Sul. É a segunda vez – a primeira foi por helicóptero – que a
pulverização aérea de agrotóxicos teria atingido comunidades rurais de
Jaqueira, município a cerca de 150 quilômetros de Recife. A região vive um
conflito fundiário entre comunidades rurais e a Mata Sul desde 2018, incluindo
denúncias de ameaça de morte e tentativa de assassinato.
Segundo moradores com os quais a reportagem da Agência Pública e a Repórter Brasil conversou, no início de setembro deste ano, drones que pulverizavam agrotóxicos no pasto vizinho também teriam sobrevoado e pulverizado agrotóxicos sobre sítios e fontes de água. Os moradores relatam dor de cabeça, enjoo e irritação na pele, sintomas comuns de intoxicação aguda por agrotóxicos. Eles contam que a pulverização também afetou as plantações e criações de animais dos moradores, principais fontes de renda das comunidades.
Foto: João Guilherme Bieber / Agência Pública
“Eu estava ajeitando a terra para plantar
verdura. O drone passou jogando veneno por cima do sítio. Passou por cima da
fonte de água. [O veneno] caiu em mim. Molhou os ombros. Quando cheguei em
casa, já estava passando mal: com dor de cabeça, moleza no corpo. Fui para o
hospital no dia seguinte e entrei no soro. Fiquei enjoado, dois dias sem querer
comer, com uma dor de cabeça muito forte”, descreveu Manoel*, um dos
agricultores atingidos pela pulverização de agrotóxicos.
O sítio em
que Manoel trabalhava fica em uma área de baixada, cercado pelo pasto. Lá
existem pequenas plantações de banana, tomate, jerimum, pepino, coentro e
cebolinha e uma fonte de água que abastece comunidades da região. Ele afirma
que as plantações foram afetadas pela pulverização e há um receio de que a
fonte de água tenha sido contaminada.
Moradores atingidos em três comunidades
registraram boletins de ocorrência na polícia civil local e uma representação
no Ministério Público de Pernambuco relatando os sintomas apresentados após a
pulverização de agrotóxicos e os danos causados às plantações e criações de
animais.
Contatada pela reportagem, a Polícia
Civil de Pernambuco afirmou que a Delegacia de Jaqueira investiga o caso e que
“todas as diligências necessárias para a elucidação do fato estão sendo
realizadas”.
Contatado pela reportagem, o Ministério
Público não respondeu até a publicação da matéria.
Questionada sobre as medidas que tomou para
proteger as comunidades e lavouras vizinhas e substâncias utilizadas, a Mata
Sul afirmou que “Considerando que existe inquérito policial em andamento acerca
deste caso, a empresa, inclusive para não atrapalhar as investigações, não pode
responder a questionamentos sobre o assunto” e que “sempre agiu na estrita
legalidade e seguindo todas as determinações acerca da aplicação de qualquer
insumo, não havendo causado qualquer dano seja ao meio ambiente seja aos
animais ou seres humanos”. Leia a resposta na íntegra das
perguntas enviadas à empresa.
Ao todo, a pulverização de agrotóxicos
afetou três comunidades rurais, segundo os moradores: Barro Branco, Engenho
Fervedouro e Várzea Velha. As três têm sua história ligada às plantações e
usinas de cana de açúcar. Elas estão dentro das terras de uma antiga usina, a
Frei Caneca, que fechou as portas no início dos anos 2000. Seus moradores
trabalharam lá ou são descendentes de antigos trabalhadores. Com o fechamento,
a maioria passou a trabalhar com agricultura familiar, cultivando pequenas
lavouras e criando animais.
Segundo
os entrevistados, os conflitos sobre a posse das terras da usina começaram em
2013 e se intensificaram a partir de 2018. Naquele ano, os quase cinco mil
hectares de terras da Usina Frei Caneca foram cedidos em arrendamento para
a Mata Sul (anteriormente conhecida como Negócio Imobiliária) para criação de
gado.
“O
drone passou por cima da plantação de banana. Com três dias, já estava tudo
morrendo”
Com 45 anos, Luciano viveu toda sua vida
em uma das comunidades afetadas. Ele contou à reportagem que o drone deu várias
voltas em cima de sua plantação de bananas. Em uma destas voltas, o líquido
pulverizado caiu sobre ele, que estava trabalhando em sua plantação de
macaxeira. Nos dias seguintes ele teve irritação na pele.
Ele também contou que perdeu pés de
macaxeira, inhame, laranja e banana e que seus carneiros adoeceram após a
pulverização. Os remédios para o tratamento dos carneiros custaram mais de
duzentos reais.
“Tentei replantar as macaxeiras, mas não
dá mais. Agora só ano que vem, quando tiver chuva. E o dinheiro para começar
tudo de novo?”
André, 32 anos e nascido em uma das
comunidades afetadas, contou que dois porcos e um carneiro morreram poucos dias
após o drone sobrevoar e despejar agrotóxicos em seu sítio, vizinho ao pasto.
Ele estimou seu prejuízo financeiro em R$ 1,3 mil reais. Além disso, familiares
que moram no sítio apresentaram enjoo e dor de cabeça.
Moradores filmaram o drone pulverizando
em um outro sítio.
“O drone passou várias vezes por cima da
plantação de banana. Com três dias, já estava tudo estourado, morrendo. A renda
que tinha era o sítio e acabou”, disse Mateus, morador há 35 anos de uma das
comunidades afetadas.
Mesmo em sítios vizinhos sobre os quais
os drones não passaram, há relatos de resultados da pulverização. Segundo os
moradores, o vento desviou o líquido pulverizado do seu alvo e o levou para
áreas vizinhas. Este fenômeno é conhecido como deriva e pode atingir moradias,
fontes de água, criações de animais e plantações. É o que relata Fábio, morador
de uma das comunidades há mais de 30 anos. Ele conta que o drone chegou a uns
15 metros de sua plantação de bananas, vizinha ao pasto e a mais afetada pela
pulverização de agrotóxicos. Seus pés de laranja, cacau e acerola também foram
afetados.
A
reportagem visitou seu sítio cerca de três semanas depois da pulverização e
observou que os troncos e folhas das bananeiras estavam secos. Bastava puxar as
folhas com as mãos para derrubar toda a bananeira. Segundo os agricultores
entrevistados, foi a pulverização de agrotóxicos que deixou as bananeiras assim.
Fátima, moradora da região há mais de 30
anos, também sentiu e temeu os efeitos da deriva. Ela mora em uma casa com
vista para o pasto, separada apenas por uma rua de terra. Segundo ela, ao ver o
drone voando e sentir a “catinga triste, que parece que toma conta do corpo da
gente”, ela pediu para que seu neto de quatro anos se protegesse atrás da casa.
Ela se lembrou de quando ela e seu neto passaram mal, com enjoo e dor de
cabeça, após um helicóptero sobrevoar o pasto vizinho pulverizando agrotóxicos
perto de sua casa dois anos atrás.
Regulação inadequada
não protege populações vizinhas e meio ambiente
A pulverização por drones sobre sítios
vizinhos, criações de animais e fontes de água é ilegal. Uma portaria do
Ministério da Agricultura, publicada em setembro de 2021, proíbe a pulverização
aérea de agrotóxicos a menos de 20 metros de povoações, cidades, vilas,
bairros, moradias isoladas, agrupamentos de animais e de mananciais de captação
de água para abastecimento da população.
No entanto, como o caso em Jaqueira
sugere, mesmo que a distância mínima de 20 metros seja respeitada, ainda assim
há riscos à saúde e ao meio ambiente. Especialistas em agrotóxicos contatados
pela Pública e Repórter Brasil acreditam
que a distância estabelecida não é suficiente.
“Essa distância de 20 metros é
insuficiente. A pulverização de agrotóxicos, principalmente por aeronaves, deve
seguir várias orientações para que a deriva técnica seja a menor possível. No
entanto, muitas das condições necessárias para garantir essa maior precisão não
podem ser controladas, como umidade do ar, temperatura ambiente, direção do
vento”, explicou Karen Friedrich, servidora pública da Fiocruz e da Unirio e
membro do Grupo de Trabalho Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva.
“Temos visto, em especial na última
década, elevado número de casos de intoxicação, incluindo de crianças, por
conta da pulverização de agrotóxicos. Enquanto outros países avançam em medidas
mais restritivas, no Brasil, as normas estão sendo flexibilizadas para permitir
o uso de mais e mais venenos.” Além disso, conforme revelado anteriormente
pela Agência Pública e Repórter Brasil,
não há estudos suficientes sobre a segurança deste novo método de aplicação e a
fiscalização é inadequada.
Não é um caso isolado
Como Fátima relembrou, esta não é a
primeira vez que as comunidades são afetadas pela pulverização de agrotóxicos
nas terras arrendadas pela Mata Sul.
Em abril de 2020, um helicóptero
pulverizou agrotóxicos na área de pasto da Mata Sul e bem próximo às casas e
plantações dos moradores. De acordo com denúncias feitas pelos moradores à
polícia civil e ao Ministério Público de Pernambuco, a pulverização de
agrotóxico causou danos às plantações e pelo menos 13 moradores, incluindo
crianças, apresentaram sintomas típicos de intoxicação, como desconfortos
respiratórios, dores de cabeça, irritação na pele e nos olhos.
A reportagem obteve vídeos registrados
pelos moradores que mostram helicóptero pulverizando pasto em uma área próxima
às casas e plantações da comunidade.
Em relação
à pulverização por helicóptero, a Mata Sul afirmou que “foi apenas um teste com
água”, “realizada por meio do lançamento de jatos de água sobre grama plantada
com papel hidrossensível, com o objetivo de averiguar a eficácia e a faixa de
aplicação, bem como a quantidade de gotas lançadas”, acrescentando que “não
houve sequer aplicação de qualquer produto químico pelo helicóptero”. A Mata
Sul também afirmou que “não houve qualquer comprovação de dano causado”.
Em um dos processos que discute a posse
das terras da usina, a Justiça de Pernambuco determinou, através de despacho,
que a empresa se abstivesse “de usar aeronaves para disseminação de herbicidas
em áreas próximas às plantações de lavouras”.
Em maio de 2020, a 31º Promotoria de
Justiça de Defesa da Cidadania do Ministério Público de Pernambuco, conhecida
como Promotoria Agrária, expediu recomendação para
que a Mata Sul adotasse as medidas preventivas necessárias estabelecidas na
legislação para evitar danos à saúde humana, animal e ao meio ambiente.
Após a recomendação da Promotoria
Agrária, a Promotoria de Justiça de Maraial, responsável por investigar a
denúncia de pulverização de agrotóxicos por helicóptero, decidiu pelo seu
arquivamento, alegando existir “apuração por outro órgão ministerial”.
Associações das comunidades recorreram da decisão de arquivamento, afirmando
que é atribuição da Promotoria de Maraial a investigação da conduta denunciada
e que a atuação da Promotoria Agrária “não substitui nem conflita com a
atribuição da Promotoria de Justiça de Maraial”, sendo voltada para a
“prevenção de desdobramentos mais graves dos conflitos agrários e a dar suporte
às demais Promotorias de Justiça”.
O Ministério Público de Pernambuco não
retornou o contato da reportagem até a publicação da matéria.
Para
moradores, os dois casos são episódios do conflito fundiário que se
intensificou com a chegada da Mata Sul. Além das três comunidades atingidas
pela pulverização por drones, outras comunidades também estão localizadas
dentro das terras da usina. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, que
acompanha as comunidades, cerca de 1,2 mil famílias vivem nas terras da antiga
usina. Elas buscam o reconhecimento do direito de permanecer nas terras em que
vivem e trabalham há décadas.
Além da pulverização de agrotóxicos,
moradores já denunciaram tentativa de assassinato, ameaça de morte e destruição de plantações,
dentre outros atos de violência e intimidação atribuídos à Mata Sul. A empresa
e seus funcionários também relatam atos de violência por parte dos moradores
das comunidades. A reportagem obteve cópias de mais de 40 boletins de
ocorrência registrados por moradores das comunidades, representantes da empresa
e seus funcionários entre 2018 e 2022.
Contatada pela reportagem, a Mata Sul
afirmou respeitar “quem esteja devidamente legitimado a ali estar e, que
detenham justo título para tal fim. No entanto, apenas busca seu direito
através da justiça, a qual deferiu diversas medidas a seu favor para
reintegrá-la na posse das áreas por ela arrendadas”. Também afirmou que
“desconhece tais ataques, inclusive a veracidade dos mesmos, sendo a própria
empresa e seus funcionários vítimas de agressões”.
Neste cenário, moradores vivem entre a
tensão do presente e as incertezas do futuro.
“Se a gente perder as nossas plantações e morada, para onde a gente vai?”, pergunta André.
* A reportagem trocou os nomes dos entrevistados por nomes fictícios.
Esta
reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência
Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A
cobertura completa está no site do projeto.
Publicado por Danilo Telles, Jornalista da Rádio Metropolitana