Foto: Danilo Telles/ RMPTV
Mais um artigo sobre o
empreendimento “Boulevard Boyes”.
Para dar nova luz ao caso,
façamos um raciocínio hipotético e em sentido inverso: e se a quadra da antiga
fábrica fosse pública e a Prefeitura quisesse construir quatro torres de
noventa metros de altura para habitações de interesse social?
Poderia o Poder Público
simplesmente rasgar o compromisso de preservação daquele conjunto que, com
outros exemplares nas margens do Piracicaba, compõe um quadro vivo e rico da
memória da cidade?
Sigamos a hipótese. Supondo
que, mesmo diante da vigência de Tombamento (Decreto nº 10.643/2004) a
Prefeitura obtivesse condições para seu empreendimento, convenientemente
amparada em muletas legais vindas de subsequentes alterações de índices
construtivos e um vergonhoso relatório do conselho municipal de patrimônio
cultural. Parece estranho, mas digamos que isso acontecesse e a Prefeitura
insistisse em sua intenção.
Ocorreria, então, de a
sociedade se opor ao empreendimento com justificativas perfeitamente cabíveis,
mesmo diante da indiscutível importância do uso (habitação de interesse
social), do dinheiro investido e dos empregos gerados durante a construção.
É fácil imaginar que esta
resistência social não precisaria de matiz ideológica, viés político ou
contraposição de grupos de interesse, pois envolveria a compreensão coletiva de
quando determinadas situações ultrapassam, em muito, o limite do razoável, é o
caso de, pura e simplesmente, dizer “não”.
Uma oposição a tal
empreendimento teria menos a ver com eventuais ganhos temporários e pontuais e
muito mais com as incalculáveis e permanentes perdas que a cidade sofreria pela
drástica deterioração de seu Patrimônio Cultural e pela abertura de precedentes
naquilo que é, nada menos, a imagem oficial da cidade: o salto do rio
Piracicaba e sua paisagem envoltória.
Novas unidades habitacionais,
investimentos, empregos, podem ser gerados em diversos locais, e a cidade os
possui para tanto. Mas Piracicaba possui também seu Patrimônio Cultural, e da
mais alta qualidade, nesse trecho à beira rio. E esse patrimônio não se
constrói de uma hora para outra.
Num país pouco afeito à
memória e identidade, às suas raízes, às suas paisagens, poucas cidades podem
se orgulhar de possuir um patrimônio riquíssimo de forma tão inequívoca e
concentrada como temos nessas margens centrais do rio Piracicaba.
E o sucesso desta preservação
não foi fruto de poucas ações, não se deveu a poucos personagens e governos.
Foi e é o resultado de um processo que começou de forma lenta e independente,
mas foi progressivamente amadurecendo e sendo compreendido por toda a sociedade
que hoje sabe ser importante sua memória e identidade à beira-rio.
Embora possa ser garantida e
estimulada por instrumentos legais, a preservação do Patrimônio também se dá (e
este é um caso) por meio do reconhecimento social, da valorização e do
fortalecimento da identificação da cidade com seus símbolos mais bem acabados,
com sua alma.
Resumindo: não se trata de ser
contra ou a favor de novas edificações, só por serem novas; de ser contra ou a
favor de um determinado uso (habitacional, comercial, misto); contra ou a favor
da iniciativa privada; do poder público; do empresário X ou Y; do
desenvolvimento ou da geração de empregos (alguém aí é contra gerar empregos?).
Trata-se de considerar o
Patrimônio Cultural na medida em que ele juridicamente é, ou seja, um direito
coletivo, a ser usufruído pelas gerações presentes e futuras para o efetivo
senso de pertencimento, da própria origem e história da cidade. E isso só se
alcança com respeito ao Patrimônio, com a apropriação de suas qualidades,
consideração de suas características pelos projetos de intervenção,
convergência entre as possibilidades de uso e de preservação.
Coisas que grandes - e quatro
torres - na Boyes não possuem, definitivamente.
Artigo assinado por: Eduardo
Dalcanale Martini, Estevam Vanale Otero e Fabio Guimarães Rolim - Arquitetos e
Urbanistas