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Agência Pública teve acesso a depoimentos e documentos que
registram violações de direitos na faculdade.
Humilhações
públicas, trotes, racismo, LGBTfobia, intimidações e atos violentos. Essas são
algumas das denúncias que envolvem repúblicas da Esalq (Escola Superior de
Agricultura Luiz de Queiroz), no campus da USP de Piracicaba, interior de São
Paulo. Os casos já chegaram ao Ministério Público de São Paulo e foram
investigados pela Assembleia Legislativa do estado, em 2014. Mas novas
denúncias continuam surgindo.
Estudantes do campus ouvidos pela Agência Pública relataram
atos violentos que teriam acontecido este ano, em repúblicas da faculdade.
Também tivemos acesso a relatos de abusos relacionados a uma passeata chamada
de “Libertação dos Bixos”, um evento realizado há mais de 80 anos pelas
repúblicas da Esalq, sempre no dia 13 de maio, que marca a abolição da
escravatura no Brasil. Nela, estudantes se pintam de preto para representar
escravizados – prática racista conhecida como “blackface”-, enquanto outros
alunos simulam chicotadas.
A reportagem ouviu professores, ex-alunos, estudantes e pessoas
que contaram ter testemunhado os abusos dentro de repúblicas do campus e em
eventos relacionados à Esalq.
Luca Paschoalini, estudante de Engenharia Agronômica do campus, diz que, no começo da passeata dos “bixos”, oitenta anos atrás, “todos os ingressantes tinham que puxar uma carroça, simulando escravizados”. Na página do Facebook da Associação de Ex-Alunos da Esalq (ADEALQ) há fotos, da década de 40, que mostram estudantes puxando uma carroça.
Passeata de Libertação dos Bixos em 1942
As repúblicas responsáveis pela passeata fazem parte do Conselho de Repúblicas, instituição que tem parceria com comércios da cidade e é mantida através de doações de ex-alunos. Antes chamadas de senzala, alforria e holocausto, em 2020, elas mudaram de nome para SZ, Xarmosa Eufloria e Kaos, respectivamente.
Os alunos ouvidos pela Pública relatam que a república Senzala, atualmente SZ, estaria entre as mais problemáticas. Ela foi fundada em 1991, com uma bandeira que retratava dois bonecos negros caricatos, com lábios grandes e rosados. O estilo do desenho tem estereótipos de pessoas negras e lembra os “pickaninny”, forma racista com que crianças negras eram retratadas em desenhos e histórias infantis nos EUA no século XIX.
A Agência Pública entrou
em contato com o Conselho de Repúblicas da Esalq e com as repúblicas SZ,
Xarmosa Eufloria e Kao acerca dos relatos. Em resposta, o Conselho de
Repúblicas, que representa todas as repúblicas citadas, disse que “não promove
a Passeata de Libertação dos Bixos e que o evento é organizado por algumas
repúblicas específicas”. Por nota, o Conselho também afirmou que não teve
conhecimento de denúncias relacionadas aos casos de racismo.
Quanto aos
relatos de trotes e outras violências, o Conselho disse que não recebeu
informações sobre tais incidentes e salientou a existência do canal oficial de
denúncias da USP chamado “Disque Trote”, onde qualquer pessoa pode reportar uma
situação.
O Conselho
negou que a bandeira que era usada pela república SZ tinha caráter racista e
não informou o que motivou a alteração dos nomes das repúblicas. A resposta na íntegra pode ser acessada aqui.
Uma
estudante que pediu para não ser identificada, do curso de Engenharia
Agronômica da Esalq, disse que foi agredida em uma das festas das repúblicas,
que aconteceu no mês de maio. “Os calouros foram obrigados a ajoelhar em fila
diante dos veteranos. Como o espaço da festa estava muito cheio, meu pé acabou
saindo da fila. Por conta disso, um dos meninos começou a me chutar, xingando
comigo porque eu havia desobedecido a rigidez de um desses rituais”.
Ela não chegou a registrar queixa sobre a agressão, mas relata ter
procurado o centro acadêmico da faculdade, já que o evento aconteceu fora das
dependências do campus. Segundo a estudante, ficou decidido apenas a retirada
dos calouros das atividades ligadas à atlética, treinos de modalidades
esportivas e participação de campeonatos.
Outra estudante que falou em condição de anonimato disse que os
calouros são obrigados a usar um chapéu, que simula o usado por trabalhadores
do campo, além de receberem um apelido que normalmente reforça algum
preconceito ou alguma característica física da pessoa. Segundo ela, que é uma
mulher negra, “é bem difícil estudar nesse campus e vivenciar essas coisas,
porque é racismo escancarado”. Ela diz que a “Passeata dos Bixos”, “além de ser
misógina e LGBTfóbica é marcadamente racista”.
Um ex-aluno da Esalq, do curso de Ciências Biológicas, que também
pediu para não ser identificado, lembra dos dias que antecedem a “Passeata dos
Bixos” como uma “semana do terror”. Ele diz que, em alguns momentos, os
calouros são obrigados a comer embaixo da mesa e se ajoelhar na frente dos
veteranos. “Pedem para você se xingar, muitas vezes de joelhos. Eu, por
exemplo, na minha primeira semana, tive uma calça rasgada de ajoelhar em
pedra.”
Os chamados trotes escolares são proibidos há quase 24 anos no
estado de São Paulo. Segundo a Lei 10.454/1999, “é vedada
a realização de trote aos calouros de escolas superiores e de universidades
estaduais, quando promovido sob coação, agressão física, moral ou qualquer
outra forma de constrangimento que possa acarretar risco à saúde ou à
integridade física dos alunos”.
A USP também possui, no regimento próprio, uma portaria que proíbe atividades que envolvam a prática do trote. Além disso, desde 2019, a universidade adotou um aplicativo disque-trote.
Depoimentos de alunos e ex-alunos registram histórico de violações de direitos durante o evento
“Atiraram
veneno em mim”, diz aluno que sofreu trote
A reportagem teve acesso aos documentos da CPI que investigou
trotes nas universidades de São Paulo, em 2014. Eles registram depoimentos de
ex-alunos da Esalq, que relataram terem sido vítimas de abusos nas repúblicas
do campus. Em um dos depoimentos, um ex-aluno diz que os veteranos o atingiram
com veneno agrícola em um trote.
“Atiraram veneno em mim. Veneno agrícola, um veneno que te deixa
tonto, amolece as pernas. Parece que se trabalhou o dia inteiro na enxada”, diz
um trecho do depoimento.
“Certa vez, os calouros aspirantes a uma vaga em determinada
república foram levados a um canavial. Lá, foram submetidos a uma bateria de
provas para eleger qual deles possuiria a vaga. Essas provas consistiram em
situações vexatórias, como nudez, poses e exercícios envolvendo os órgãos
genitais dos alunos, e também agressões físicas com chicotes e palmatórias para
separar os meninos dos homens, como foi dito por esse aluno. No final, ele
anunciou orgulhoso que havia sido aceito na república”, disse outra aluna, em
depoimento à CPI. A reportagem tentou contato com os ex-alunos que prestaram
depoimentos, mas não obteve sucesso.
Adriano Diogo, ex-deputado estadual (PT/SP) e presidente da CPI na
época, conta que visitou a Esalq antes de iniciar a Comissão. “Quando eu
cheguei lá no campus estava tendo trote. Os ‘bixos’ vestidos de saco de
linhagem, como se fossem escravos, miseráveis, todos pintados”, exemplifica. O
deputado contou à reportagem que ficou espantado ao perceber que não era apenas
uma festa, como as repúblicas estudantis costumam divulgar.
Ao fim de dois meses de apurações, 37 audiências públicas e nove
mil declarações e documentos, um relatório da CPI foi encaminhado para cada uma
das universidades envolvidas. Também foi criada a Lei nº 10.454/2020, em São
Paulo, que orienta pena administrativa aos universitários que praticam trote,
incluindo expulsão da escola, sem prejuízo das sanções penais e civis cabíveis.
Atualmente, o Projeto de Lei nº455/2023, de
autoria do senador Jorge Kajuru (PSB/GO), que tramita no Senado, proíbe a
prática de trotes em nível nacional.
Também foi orientado ao Ministério Público a abertura de um
inquérito para avaliar a falha administrativa da USP, a respeito da
documentação de denúncias encaminhadas. O inquérito foi direcionado apenas ao
curso de Medicina, no campus da capital. A Esalq não foi citada. O inquérito
sobre trotes na faculdade de Medicina foi concluído, na época, relatando que
“os investigados adotaram medidas para coibir tal prática, com instauração de
procedimentos administrativos, edição de portaria proibindo sua consumação,
realização de campanhas de conscientização e abertura de canal direto para
realização de denúncias. Ausência de indícios de omissão e, por consequência,
de atos de improbidade administrativa”.
“Há uma tentativa de proteger a imagem institucional, que acaba
levando à impunidade dessas pessoas que praticaram esses atos”, diz o
ex-deputado Adriano Diogo.
Depois da CPI, a Esalq criou um grupo permanente de
atendimento de vítimas e denúncias de trotes e de
uma comissão disciplinar. A reportagem tentou, por várias vezes, contato com o
grupo sem sucesso. Por meio de LAI (Lei de Acesso à Informação), a reportagem
teve acesso a nove sindicâncias e três denúncias registradas entre março de
2015 e março de 2018 sobre atos violentos praticados na Esalq, que foram
encaminhadas ao Ministério Público e ao Tribunal de Justiça de São Paulo.
Entre os arquivos, estão quatro relatos de mães de alunos contando
sobre violências sofridas por seus filhos na faculdade ou em alguma república.
Em dois casos, as mães encaminharam um pedido de cancelamento de matrícula.
Uma das mães relatou que a filha ficava na república Alforria,
atual Xarmosa Eufloria, onde “era presa para fora, colocada embaixo da mesa de
jantar, obrigada a comer coisas nojentas, se ajoelhar na frente de veteranos e
ingerir bebidas alcoólicas”.
Outra mãe que pediu o cancelamento de matrícula relatou que sua filha era também era “obrigada a comer embaixo da mesa” alimentos com muito sal e vinagre, e foi “jogada em um piscina funda sem escada durante uma festa, o que deixou hematomas na perna da aluna”. A mãe ainda relatou que sua filha teve “sintomas de pressão alta” por conta do sal, depressão e síndrome de pânico. As 12 denúncias foram arquivadas pelo MP. A Esalq não respondeu a reportagem até a publicação.
Estudante diz que a “Passeata dos Bixos”, “além de ser misógina e LGBTfóbica é marcadamente racista”
Universidade,
preconceitos e trote
Antônio Ribeiro de Almeida Jr. é Professor do Departamento de
Economia, Administração e Sociologia na Esalq desde 2001, quando também começou
a pesquisar sobre os trotes que ocorrem na faculdade. Ele é autor do livro
“Universidade, Preconceitos e Trote” e de outras duas obras que tratam sobre o
assunto. Em 2015, ele fez uma denúncia ao Ministério Público sobre os trotes.
Um inquérito foi instaurado, mas arquivado depois da celebração de uma “Recomendação Administrativa”, acatada
pela diretoria da Esalq, no mesmo ano.
De acordo com o MP, “não existem procedimentos específicos acerca
de fatos relacionados a racismo vinculados à mesma universidade”. O órgão
indicou que a reportagem procurasse a Promotoria de Justiça Criminal de
Piracicaba para averiguação de informações complementares. Fizemos contato com
a Promotoria, que informou não ter registros de denúncias relacionadas a
racismo ou injúria racial na Esalq.
O professor Antônio Ribeiro diz que, na Esalq, os trotes são “uma
cultura enraizada e institucionalizada”, com a participação de ex-alunos e até
professores. “Você tem estudantes que impõem essas práticas, mas que estão
ligados a esses mais velhos, ex-alunos, docentes. Você recruta e treina essas
pessoas num determinado tipo de ambiente cultural e de valores, ou falta
deles”, diz.
Todos os alunos e ex-alunos da Esalq ouvidos pela Pública relataram a
participação e influência de professores e ex-alunos na “passeata dos bixos” e
nos trotes que a antecedem. Segundo a estudante da Esalq Luca Paschoalini, a
“cultura trotista é tão forte dentro da Esalq que pessoas que saíram há décadas
da faculdade ainda estão envolvidas”. “Quem não aceita o trote ou não
participa, além de ficar mal visto no campus e sofrer perseguição por parte do
núcleo trotista, ainda pode ficar queimado nas grandes empresas do agronegócio
e tem dificuldade de conseguir um emprego ao sair da faculdade”, conta.
Para Antônio Ribeiro, o trote é uma espécie de ritual de
sacrifício, onde os valores de emancipação são sacrificados. “Se você tem
preocupações ambientais, vai ter que deixar de ter para participar do grupo. Se
você não é racista, vai ter que passar a ser racista, se você não é misógino,
precisa demonstrar misoginia, porque, senão, você vai ser excluído do grupo”,
diz.
Na avaliação do professor, há um comportamento histórico
generalizado dentro das universidades brasileiras, que possibilita a manutenção
de uma cultura violenta e preconceituosa. Neste ano, apenas 4%
dos estudantes ingressantes na USP são pessoas negras. “Os alunos chegam aqui
[na Esalq], muitas vezes, com uma série de questões emancipatórias que estão
começando a despertar dentro deles e se deparam com esse ambiente que bloqueia
completamente qualquer ideia nesse sentido”, critica o professor.
“As universidades brasileiras, até muito recentemente, tinham um
comportamento fascista, sexista, classista e tudo mais que você quiser. Eu
diria que isso continua, embora a gente tenha uma política de cotas. Não é uma
questão só da Esalq”, diz.
Após
a publicação da reportagem, a Associação Atlética Acadêmica “Luiz de Queiroz”
entrou em contato com a Pública informando que a festa onde a estudante da
Esalq relata ter sido agredida “não foi realizada pela atlética e que eles, em
momento algum, tomaram providências no sentido de punir os ingressantes ou
vítimas do ocorrido.
Texto: Agência Pública
Publicação: Enzo Oliveira/ RMPTV