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CONSÓRCIOS MUNICIPAIS SOB SUSPEITA: CONCURSOS OBRIGATÓRIOS E FRAUDES TRABALHISTAS EM DEBATE

Publicada em: 09/09/2025 18:59 -

Criados com a finalidade de racionalizar despesas públicas e ampliar a eficiência de serviços prestados de forma compartilhada, os consórcios públicos intermunicipais consolidaram-se, ao longo dos últimos anos, como alternativa de gestão para prefeituras que enfrentam severas limitações orçamentárias. Sua base normativa é a Lei nº 11.107/2005, regulamentada pelo Decreto nº 6.017/2007, diploma que lhes conferiu personalidade jurídica própria.

Tais entidades podem adotar a forma de associações públicas — equiparadas a autarquias — ou de pessoas jurídicas de direito privado, sempre sem finalidade lucrativa. Em tese, trata-se de um mecanismo legítimo e moderno de cooperação federativa. Na prática, contudo, o modelo tem sido alvo de crescentes questionamentos em razão de irregularidades no provimento de pessoal.

Nos termos da legislação, o ingresso em cargos permanentes deve ocorrer, invariavelmente, por meio de concurso público. Se estruturados como associações públicas, o regime aplicável é o estatutário; se organizados como pessoas jurídicas de direito privado, vigora a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As exceções são restritas: processos seletivos simplificados para funções temporárias, desde que previstos em lei específica, e cargos em comissão, limitados às atribuições de direção, chefia e assessoramento. Fora dessas hipóteses, qualquer contratação direta configura ilegalidade.

Não obstante a clareza normativa, proliferam denúncias de expedientes utilizados para burlar o concurso público. Entre os mecanismos mais recorrentes está a denominada pejotização — prática pela qual o trabalhador é compelido a constituir pessoa jurídica para prestar serviços de forma pessoal e exclusiva —, além do uso da Sociedade em Conta de Participação (SCP), em que profissionais são formalmente alçados à condição de “sócios”, sem participação efetiva nos riscos ou nos lucros da atividade. Em ambos os casos, a roupagem contratual busca mascarar o verdadeiro vínculo de emprego.

A CLT estabelece critérios objetivos para a caracterização da relação empregatícia: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Estando presentes tais requisitos, a relação deve ser reconhecida como de emprego, independentemente da nomenclatura contratual. O Tribunal Superior do Trabalho, reiteradamente, tem classificado a pejotização como “fraude perniciosa”, rechaçando manobras destinadas a esvaziar a proteção laboral.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também já enfrentou a matéria. Em 2018, no julgamento do Tema 725 de repercussão geral, a Corte reconheceu a licitude da terceirização, mas enfatizou que tal decisão não legitima práticas fraudulentas. Em abril de 2025, o STF determinou a suspensão nacional de processos que discutem a validade de contratações questionadas, justamente para delimitar as fronteiras entre terceirização legítima e fraude trabalhista, além de definir a distribuição do ônus probatório em tais litígios.

As repercussões práticas dessas irregularidades são severas. Para os trabalhadores, significam supressão de direitos fundamentais, como férias, 13º salário, FGTS e cobertura previdenciária. Para os cofres públicos, geram passivo trabalhista de alto impacto: reconhecido o vínculo empregatício em juízo, a Justiça do Trabalho pode responsabilizar subsidiariamente não apenas os consórcios, mas também os municípios consorciados, comprometendo recursos que deveriam ser destinados a políticas públicas.

Especialistas salientam que a autonomia administrativa dos consórcios não os exime do cumprimento rigoroso da ordem jurídica. Pelo contrário, por se tratar de entes criados a partir da vontade de entes federados, sua atuação deve observar, de forma estrita, os princípios constitucionais da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Contratações de fachada, não configuram inovação gerencial, mas sim fraude laboral e afronta à Constituição Federal.

O debate em torno das contratações nos consórcios públicos deve se intensificar, especialmente à espera de pronunciamento definitivo do STF quanto aos limites da terceirização e à responsabilidade solidária ou subsidiária dos gestores. Enquanto isso, cresce a pressão por maior transparência e controle externo. Ministérios Públicos estaduais e Tribunais de Contas já ampliam a fiscalização, mas a eficácia dessas medidas dependerá também da mobilização social e da vontade política dos prefeitos que integram essas estruturas.

No cerne da discussão, está a proteção ao trabalho digno e a adequada gestão dos recursos públicos. Se os consórcios surgiram como instrumento para fortalecer a cooperação federativa, sua credibilidade somente se sustentará mediante respeito absoluto às regras constitucionais e legais. O que nasceu como solução não pode, sob qualquer pretexto, transformar-se em foco de precarização das relações de trabalho e de insegurança jurídica.

José Osmir Bertazzoni – Advogado e Jornalista

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