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Aviso: a reportagem abaixo trata de temas como automutilação e transtornos mentais. Se você está passando por problemas, veja ao final do texto onde buscar ajuda.
Ao longo do último ano, um mesmo trabalho se repetiu por várias madrugadas no Núcleo de Operações e Articulações Digitais (Noad) da Polícia Civil de São Paulo: a delegada Lisandrea Salvariego Colabuono ou algum outro policial telefona para um pai ou uma mãe avisando que sua filha está no cômodo ao lado se automutilando ou praticando alguma outra violência contra si mesma por ordem de um agressor. Com tudo transmitido ao vivo pela internet.
“Ligo imediatamente para que ele vá e resgate essa vítima. Vejo o pai chegando no banheiro, a mãe chegando no quarto e tirando a vítima. Tudo é transmitido ao vivo. O servidor imediatamente cai, porque o agressor derruba, mas isso não impede que eu peça os dados e consiga investigar”, relata Lisandrea.
Há um ano à frente da equipe do Noad, ela comemora terem salvado 329 meninas de arenas virtuais onde são forçadas a se machucar, apreendido 112 adolescentes agressores e prendido 42 adultos por crimes como estupro virtual. O desafio, porém, continua grande. “Desde que começamos, a violência subiu muito, escalou muito”, conta a delegada.
Com 18 anos de carreira na polícia paulista, Lisandrea diz também que já investigou denúncias de violência na delegacia da mulher, atuou na divisão de homicídios, se deparou com cenas violentas do mundo da criminalidade, mas nunca havia visto coisas tão cruéis como as que têm acompanhado desde que assumiu o Noad.
“Tem de ter uma união urgente entre Estado e sociedade civil para combater isso de maneira efetiva”, resume. E esse combate passa por os pais não só restringirem o uso de telas por crianças e adolescentes como ficarem atentos a sinais repentinos dos filhos, como mudança de comportamento, queda de rendimento escolar e uso de palavras diferentes. “O algoritmo, a rede social, conhece o filho melhor do que os pais. E isso é triste porque ele pode se tornar agressor ou vítima desses crimes que a gente vê online.”
Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao programa Mulheres Reais, da Rádio Eldorado.
Quando o governo de São Paulo decidiu criar um núcleo especificamente para investigar crimes virtuais?
A partir dos trágicos episódios de ataques a escolas em 2023. Foi a partir do entendimento desses crimes, em específico de Sapopemba, que nós, a partir do inquérito policial, concluímos que os dois ataques foram combinados e transmitidos ao vivo na plataforma Discord. No início de 2024, começamos timidamente na delegacia geral, com três policiais apenas, a ver como tudo acontecia.
Coisas que digo a vocês que nunca vi em 18 anos como delegada de polícia. Já trabalhei em setores muito sensíveis da Polícia Civil: na Delegacia de Defesa da Mulher, na Delegacia de Defesa de Proteção à Pessoa aqui no DHPP. Ou seja, já vi quase tudo nessa vida, mas nada igual ao que a gente vê nas plataformas digitais, especificamente durante a madrugada.
Levamos esse entendimento ao conhecimento do secretário (de Segurança Pública, Guilherme Derrite) e da Delegacia Geral e passamos a ter uma equipe maior na Secretaria de Segurança Pública. Foi uma tomada de decisão importante. Na secretaria, nossa capilaridade de atendimento é maior. Consegue salvar muito mais vítimas.
O que vocês têm encontrado, sobretudo nas madrugadas?
As vítimas, em sua grande maioria, são meninas cooptadas ou aliciadas num jogo online. No Roblox, no Minecraft, no Free Fire, em qualquer jogo online que permita interação.
(Em nota, a Roblox diz ter compromisso com a segurança infantil e implementar políticas e recursos para proteger usuários e remover indivíduos mal-intencionados. “Neste ano, introduzimos mais de 145 medidas de segurança na plataforma e, como pioneiros entre plataformas de jogos ou comunicação online, anunciamos recentemente que todos os usuários precisarão passar por uma verificação de idade para acessar os recursos de chat no Roblox”, diz a empresa)
Violência não começa por violência, violência começa por palavras agradáveis. (O agressor) faz com que a vítima se sinta pertencente àquele mundo, o que é importante para uma criança ou adolescente. E ali, com palavras carinhosas, gestos carinhosos virtuais, são cooptadas, migram de plataforma, começam um namoro online e, quando ela manda a primeira foto íntima, o primeiro vídeo íntimo, o mundo dela acabou. Porque ela começa a ser extorquida, coagida, a cada vez mais se mostrar online, ao vivo.
Todo esse material depois é vendido como pornografia infantil. Existe um comércio milionário por trás desse crime perverso. Ela é obrigada a fazer mais nudes, mais fotos íntimas e fica na mão do agressor.
O Discord foi criado para o universo gamer. Ele permite esse compartilhamento de telas. A vítima é colocada numa arena virtual e ali os agressores começam a dar ordens para ela se cortar, cortar o cabelo e inevitavelmente termina com cenas em que a vítima é obrigada a introduzir um objeto perfurocortante nas partes íntimas. Há cenas em que ela é obrigada a introduzir cabos de vassoura nas partes íntimas. São cenas que desejo que ninguém veja e, muito menos participe, seja vítima disso.
(Em nota, o Discord afirma não tolerar conteúdos ou comportamentos que coloquem os jovens da plataforma em risco. Diz ainda usar ‘tecnologia avançada’ e equipes treinadas para encontrar e remover conteúdos que violam as políticas do aplicativo. “Denunciamos proativamente grupos e indivíduos envolvidos nesse tipo de conduta e continuamos a cooperar com as autoridades policiais”, afirma.)
Nesse monitoramento, vocês chegam a interagir ativamente nas redes ou observam passivamente para escolher o momento da ação?
Embora tenhamos autorização judicial para isso, porque todas as nossas investigações tramitam pela vara de organização criminosa, a plataforma não permite. Chega até ser grotesco isso, mas ela não permite que façamos infiltração. Então ficamos como observadores digitais.
Essa observação digital acontece de maneira passiva. Estamos ali para salvar vidas. Meu foco é a vítima. O autor consigo identificar com um tempo adequado para que eu colha provas contra ele, a vítima não. Preciso tirar a vítima daquele cenário imediatamente. E temos conseguido isso, graças a Deus, com êxito. Até hoje não perdemos nenhuma vítima de automutilação, de suicídio infanto-juvenil.
Isso é o que diferencia o núcleo. A partir da observação digital, identifico a vítima, porque ela não mente os dados. Consigo ligar na madrugada para os pais, familiares, para que entrem imediatamente num quarto, num banheiro, onde a vítima está praticando esses atos e depois consigo, na investigação, identificar o autor.
Pelo que veem, os pais têm alguma ideia do que acontece com as filhas e os filhos no quarto ao lado?
Não têm a menor ideia. Percebemos nitidamente isso desde a vítima até o autor. Quando conseguimos interagir e salvar a vítima, dou uns 15 minutos e depois ligo novamente para os pais. (Primeiro) eu ligo imediatamente para que ele vá e resgate essa vítima. Vejo o pai, a mãe chegando no banheiro, no quarto, tirando a vítima, porque tudo é transmitido ao vivo. O servidor imediatamente cai, porque o agressor derruba, mas isso não impede que eu peça os dados e investigue. Aí vem nosso papel, como Polícia Civil, e da imprensa, que é difundir esse conhecimento.
Quantas vítimas estimam ter salvado nesse primeiro ano de trabalho?
Temos 319 vítimas salvas. Salvas pelo poder estatal, porque um policial não dormiu, ficou ali monitorando. Esse é o nosso número de ouro.
É quase uma por dia… Quantos policiais vocês têm hoje trabalhando nesse monitoramento?
Por questões de segurança de inteligência, eu não vou dizer exatamente, mas nós temos em torno de 15, 20 policiais.
Tem um perfil típico também dos agressores?
Aí que está a grande a grande sacada: não tem perfilamento de agressor, não existe. O que a gente tem é a idade, que varia dos 12 anos – de uma pessoa extremamente maldosa, que sentia prazer em ver as meninas se cortando, por exemplo – até os 20, 21 anos de idade.
É muito importante a gente falar para os pais que nada disso está na deep, na dark web. A gente está falando aqui de aplicativos, de sites com acesso na superfície. Ou seja, qualquer um de nós consegue ter esse acesso. Para os agressores, é muito fácil isso, mas os pais não sabem nem por onde pesquisar, nem por onde começar.
O mínimo que deve ser feito é a restrição de acesso a telas. Crianças e adolescentes não têm o filtro necessário para entender o que é certo e o que não é porque pouco se fala sobre educação digital. Muito pouco se fala de educação sexual, o que pode ou não ser mostrado. A vítima, quando manda uma foto íntima, não tem a menor ideia, a menor percepção de que isso (a imagem) corre o mundo. Não tem mais como controlar.
Então a mãe disse isso para ela? Um familiar ou até mesmo a escola? Será que houve essa percepção? Será que os jovens têm a noção de que ofender um amigo ou fazer com que um amigo se sinta diminuído com um perfil falso criado para isso pode caracterizar cyberbullying? E que o adolescente pode ser punido por um ato infracional, por exemplo? A pena de cyberbullying é de 1 a 4 anos de reclusão, considerada alta pelos nossos ditames de Direito Processual Penal.
E as vítimas? A partir de que idade elas já acabam na mão de agressores?
Basta que tenha acesso a telas. Há vítimas de 7 anos que foram vítimas de automutilação, de estupro virtual. São crianças que não têm a menor percepção do que é ser vítima e já foram vítimas.
Começo a ter algum êxito para que tire essa vítima da conotação de vítima quando completam 15, 16 anos, porque passam a ter o filtro necessário para entender o que pode e o que não pode.
Vocês se deparam com casos de fora de São Paulo? Como é a cooperação com outros Estados?
Contamos com cooperação sim. Só que com muitos Estados, por ainda não terem um núcleo (de investigação), é um pouco difícil o acesso. Nosso primeiro contato sempre é por telefone (com a família da vítima). O que é um pouco difícil porque muitas vezes as pessoas pensam: “Alguém está tentando me dar um golpe”. Mas na hora em que me identifico e falo: “Vá até o quarto da sua filha”, (a mãe) demora um pouquinho para acordar, para ter entendimento sobre os fatos, mas, na hora que vai no quarto da filha e entende que é grave, conseguimos salvar a vítima onde quer que ela esteja. Depois geramos um relatório técnico e comunicamos oficialmente a respectiva polícia do Estado onde a vítima estiver.
Qual o balanço desse primeiro ano na identificação e prisão de agressores?
Mais de 100 adolescentes apreendidos, mais de 40 pessoas presas. É um número muito bom, mas isso pode melhorar a partir do momento que concatenar nossos desafios com o Judiciário e o Ministério Público. Já estamos numa conversa produtiva com o Ministério Público. Estão do nosso lado e sensibilizados. Não tem quem não se sensibilize com o tema. Principalmente quando mostro os vídeos, o que se vê realmente nas madrugadas.
Vocês notam uma escalada na violência?
Desde que a gente começou, a violência subiu muito, muito, escalou muito. No início das investigações, a gente percebia que eles faziam a vítima se cortar, era um arranhão, se contentavam com aquilo ou com alguma coisa imperceptível. Hoje a vítima se corta inteira. É sangue pelo banheiro. E, quanto mais se cortam com uma faca ou tesoura que não é afiada, mais prazer eles têm. E não basta só o se cortar, eles não estão se contentando mais com isso. Querem que ela se corte, que jogue álcool. Depois do álcool, alguns pedem para que joguem fogo. Tem de ter uma união urgente entre Estado e sociedade civil para combater isso de maneira efetiva.
E as plataformas? O que precisa ser feito para cobrá-las?
A melhor cobrança vem primeiro dos dados cadastrais. Tem de ter uma normatização com relação a isso.
O que seria um dado cadastral efetivo para ingressar numa plataforma? A gente percebe que qualquer dado serve, principalmente no Roblox ou no Discord. Eles aceitam. Não tem a menor verificação com relação a isso. E não raras vezes criam mais de um perfil.
A efetiva colaboração vem a partir do momento em que a polícia pede um dado e esse dado tem de vir imediatamente. E não vem. Por exemplo, vejo um crime sendo praticado no Roblox ou no Discord e esse dado demora para chegar para mim. Quando vem, vem incompleto. A sorte é que temos outros softwares de investigação que permitem chegar à vítima. Mas isso deveria ser imediatamente dado pela plataforma, o que não acontece.
Texto ESTADÃO