📷 Danilo Telles/ Rádio Metropolitana de Piracicaba/ @studioamktdigital


Parece que há um consenso em Piracicaba que os patrimônios históricos da cidade devem ser preservados. A repercussão em torno dos sinais e símbolos deixados pelo Grito dos Excluídos nas escadarias da antiga Igreja de São Benedito revelam exatamente a face de uma parcela da sociedade que está muita atenta com uma possível depredação daquele templo, que guarda uma memória tão singular para a cidade. A primeira questão que surge é: por que os monumentos históricos da cidade não são preservados? A quem cabe a preservação? Qual a responsabilidade do poder público sobre esse tema?

A Igreja de São Benedito, situada na região central da cidade, é um monumento que registra a história religiosa e também de luta e resistência de pretos e pretas. Uma história que tem sofrido tentativas de apagamento. A inauguração da Igreja remonta ao ano de 1892. A Capela de São Benedito foi tombada como patrimônio histórico e cultural de Piracicaba em 2002, por decreto assinado pelo prefeito José Machado, do PT. Importante ressaltar que a Igreja é um templo vivo, onde os fiéis ainda se reúnem para celebrações litúrgicas.

Estava cursando filosofia quando participei pela primeira vez do Grito dos Excluídos. Lembro-me que foi um Ato forte, muito impactante, com a presença inspiradora de Dom Paulo Evaristo Arns, então Cardeal da Arquidiocese de São Paulo. Era um tempo de uma Igreja marcada pelo debate em torno das questões sociais. Aliás, o Grito dos Excluídos nasceu como desdobramento das reflexões desenvolvidas na Segunda Semana Social Brasileira, que apontava a urgência de se reconhecer e se pagar pelas dívidas sociais históricas do país.

       Desde a década de 60, principalmente com a visão ética e pastoral de Dom Helder Câmara, tanto nas pastorais sociais quanto na própria pastoral da juventude, a metodologia do ver, julgar, agir e celebrar tem estruturado as dinâmicas das celebrações e reflexões. Essa metodologia não deixou de pautar também as celebrações do Grito, que sempre assumiam a dimensão de denunciar a realidade, apresentar os critérios de julgamento a partir da ética cristã, apontar caminhos de ação para superar aquela realidade e celebrar a esperança em um tempo de justiça e paz.

       Para dar cores a uma determinada realidade que se apresentava contrária aos princípios do Evangelho, o Grito dos Excluídos sempre contemplava uma perspectiva performática, com encenações, jograis, ritualidades e muitos símbolos. Foi assim também na dinâmica do Grito dos Excluídos que aconteceu no último dia 7 de setembro, em Piracicaba.

       Os participantes do Grito se reuniram, como fazem todos os anos, na Praça José Bonifácio, bem em frente às escadarias da Catedral de Santo Antônio. Era um dia tenso, com a expectativa de manifestações de apoio ao governo da morte. Sabendo disso, e em caso de uma situação mais belicosa, a organização do Grito contava com o amparo da Igreja, podendo seus participantes se refugiarem no espaço sagrado da Catedral. Aliás, essa é uma tradição mais que milenar: a Igreja como espaço de proteção. Teologicamente a Igreja, sob o signo de Pedro (Kefas, do grego), deve ser sempre gruta, abrigo, amparo, proteção. Estranhamente, em descompasso com uma belíssima tradição, as portas da Igreja foram rapidamente fechadas, deixando os participantes do Grito em desamparo.

       Com seus símbolos e cantos, o Grito tinha uma liturgia: sair em caminhada (procissão) até a Capela de São Benedito. Com a cruz à frente, inspirados no tema Vida em Primeiro Lugar, o Grito foi demarcando o trajeto com o simbolismo do “sangue” – um misturado de água, farinha de trigo e corante, facilmente lavável. No largo da Capela de São Benedito o ritual das falas não deixou de seguir a dinâmica do velho método “ver, julgar e agir”, trazendo à luz tantos gritos, silenciados por uma lógica social que se acostumou e naturalizou as injustiças.

       O “sangue” derramado, na ritualidade e simbolismo do Grito, buscava fazer menção a tantas situações que aviltam a dignidade humana, demarcando uma realidade de injustiça e violação de direitos. A proposta de uma manifestação tomada por uma ritualidade, com símbolos e sinais, é sempre sensibilizar às pessoas, provocando para um despertar de consciência. Demarcando seu trajeto, em um cortejo pela vida, o Grito espalhou “sangue” por ruas e um pouco pelas escadarias da Capela de São Benedito.

       O senhor Paulinho, que vive em situação de rua, há 5 meses fez de uma das laterais da Capela de São Benedito seu abrigo. Há alguns dias, em uma tentativa de retirá-lo daquele espaço, os papelões que utiliza para se aquecer e se proteger foram queimados, causando danos e depredação à lateral da Igreja. Senhor Paulinho também participou do Grito, sentindo-se representado em toda aquela liturgia.

       O que realmente choca e assusta? Uma performance com água, farinha de trigo e corante – biodegradável, removível e sem provocar danos – ou as situações cotidianas de exclusão? O grito do senhor Paulinho e de tantos outros excluídos dos direitos de cidadania serão ouvidos? O que nos move e nos comove? Para o cristão ou para o militante não é possível ficar neutro nesse debate, há um lado da história a ser assumido. Não é possível servir a dois senhores. O episódio não deixa de ilustrar a tática de criminalizar os movimentos sociais, com produção de fakenews e muita detratação, compondo um debate sem o mínimo compromisso com os princípios da verdade e da justiça.

       O inusitado é que o símbolo do “sangue” passou a ser debatido como um ato de depredação e vandalismo ao monumento histórico tombado, que é a Capela de São Benedito. Em uma tentativa de abafar o Grito dos Excluídos o debate foi tomado por fakenews e detratações. Com as chuvas, o símbolo do “sangue” nas escadarias da Capela de São Benedito será facilmente apagado, mas o sangue de tantos excluídos continuará clamando por justiça. Ainda que o “sangue” simbólico seja levado pelas chuvas densas e divinas, o sangue da opressão, do abandono e da mentira, que corre pelas muitas cruzes, permanecerá incrustado nas mãos daqueles que na história são conhecidos como os verdadeiros fariseus.


Assina o Artigo - Prof. Adelino Francisco de Oliveira

Professor no Instituto Federal, campus Piracicaba.

Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião.

adelino.oliveira@ifsp.edu.br

@Prof_Adelino_

professor_adelino

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